terça-feira, 8 de junho de 2010

PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Por Cíntia Zemero, Regina Célia Farias e Sérgio Bragança.


As inúmeras mudanças e ocorridas nos últimos tempos têm refletido sobremaneira no Direito de família, o que levou nosso ordenamento jurídico a reconhecer e consagrar novos valores, muitos deles abstratos, como o afeto, através da constitucionalização da família.

A legislação brasileira exige leitura compartilhada com os valores e com a hermenêutica constitucional, pois nossa República, constituída em Estado Democrático de Direito, tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).

A questão da paternidade, nessa ótica constitucional e dirigida pelos novos tempos, não se prende a ficções, requerendo tratamento jurídico condizente com essa nova realidade, providência que exige nova ótica da estrutura e efeitos das relações paterno-filiais.

A paternidade ou filiação no Direito da Família atual comporta a análise de três pilares, que sustentam e se interligam na relação paterno-filial: a paternidade jurídica, a paternidade biológica e a paternidade sócio afetiva.

A paternidade jurídica ou registral é provada por documento público hábil, qual seja, a certidão oficial de registro de nascimento, obtendo a verdade legal: presunção de veracidade e publicidade. Assim, essa paternidade é a principal geradora de direitos e deveres imediatos.

Entretanto, atualmente, à questão de grande complexidade referente ao tema diz respeito à contraposição dos outros dos pilares antes mencionados, que se constituem na paternidade sócio-afetiva em oposição ao vinculo biólogo.

A paternidade biológica se relaciona com a consangüinidade que pode ser provada cientificamente pelo exame de DNA, que revela a verdade técnica sobre a paternidade.

Ocorre que a grande indagação que se faz, na sociedade atual, é se realmente, o simples vinculo biológico é capaz de traduzir, em toda sua dimensão, a relação paterno-filial. Seria a paternidade, diante das novas tendências sociais e dos princípios consagrados na Constituição da República, uma mera vinculação biológica entre duas pessoas?

Na verdade, o aspecto biológico, não obstante continuar a ser buscado com muita intensidade, não tem, diante da perspectiva atual da nossa sociedade, o condão de revelar a verdadeira paternidade, do ponte de vista social.

Realmente, o Direito de Família, diante da novas tendências sociais, de valorização do aspecto humano e da dignidade da pessoa humana, passa por grande mudanças e, no que tange à paternidade, a doutrina moderna defende a tese da desbiologização da paternidade, ao argumento de que para além de um vinculo, deve-se buscar o sentimento e o vínculo afetivo desenvolvido entre pai e filho, para que seja revelada a verdadeira paternidade.

Com efeito, pai é aquele que cuida, ama, enfim, tem afeto com o filho, tudo dentro da perspectiva da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana.

Acerca do tema LUIZ EDSON FACHIN ensina o seguinte:
Se o liame biológico, que liga um pai a seu filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade sócio-afetiva que se capta juridicamente na expressão da posse do estado de filho.

Embora não seja imprescindível o chamamento do filho, os cuidados na alimentação e na instrução, o carinho no tratamento (quer em público, quer na intimidade do lar) revelam no comportamento a base da paternidade. A verdade sociológica da filiação se constrói. Essa dimensão da relação paterno-filial não se explica apenas na descendência genética.

Numa perspectiva constitucional, pode-se dizer que a afetividade nada mais é do que uma das formas de consagração do princípio da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, a dignidade da pessoa humana preconiza que o ser humano é o centro de tudo, tendo em vista sua dignidade imanente, sendo que as relações sociais devem ser desenvolvida de forma a otimizar a realização das necessidades do homem, em prol de seu bem estar.

O princípio da dignidade da pessoa humana é fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. É o princípio que dá unidade e coerência ao conjunto desses direitos. A proteção e defesa da dignidade humana e dos direitos da personalidade, no âmbito jurídico, alcança importância significativa, e é nessa perspectiva que deve ser abordada a questão da paternidade afetiva, e, mais propriamente, da afetividade, como elemento concreto da realização da dignidade humana, que merece destaque e proteção em nosso ordenamento jurídico.

Além disso, pode-se dizer que o princípio da afetividade, por sua vez, está consagrado na Constituição Federal, nos artigos 226, §4º e 227 §6º. Com efeito, a previsão de proteção integral à entidade familiar tutela não apenas a família formada pelo casamento, mas também todas aquelas que se formam pela comunhão do afeto, principalmente as relações estabelecidas entre pessoas que se unem numa verdadeira relação de pai e filho, independentemente da existência ou não de vínculo biológico.

A entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes se caracteriza, portanto, pelos laços de afetividade criado entre os membros da família.

O próprio Código Civil, no art. 1.593, prevê a possibilidade de consagração da paternidade sócio-afetiva, aos prescrever o seguinte:
Art. 1.593 – O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

A legislação pátria, portanto, consagra, expressamente, que o parentesco pode resultar de consangüinidade ou de outra origem, estando, no mencionado dispositivo legal a base legal infraconstitucional da paternidade sócio-afetiva.

Com efeito, a paternidade e a relação de filiação não decorrem propriamente da genética, mas se constitui verdadeiramente como um fenômeno cultural,revelado pela própria função social (de educação, afeto, atenção) desempenhada pelo pai em relação a seu filho. A propósito, este é o magistério PAULO LUIZ NETO LOBO:
Impõe-se a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade.

Importante, também, citar lição de MARIA BERENICE DIAS, segundo a qual:
A paternidade deriva do estado de filiação, independente de sua origem, se biológica ou afetiva. A idéia de paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismo biológico. Também e sede de filiação, prestigia-se o princípio da aparência.

O vinculo afetivo, caracterizado como aspecto sócio cultura, suplanta o aspecto genético, para fins de determinação da paternidade.

Acerca da matéria, MARIA CRISTINA DE ALMEIDA, leciona o seguinte:
O reconhecimento de situação fáticas representadas por núcleos familiares recompostos vem trazer novos elementos sobre a concepção da paternidade, compreendendo, a partir deles, o papel social do pai e da mãe, desapegando-se do fator meramente biológico e ampliando-se o conceito do pai, realçando sua função psicossocial.

A vinculação socioafetiva prescinde da paternidade biológica. No sentido da paternidade de afeto, o pai é muito mais importante como função de que, propriamente, como genitor.

Finalmente, é importante registrar que a jurisprudência pátria oscila no tocante à matéria, mas há julgados, inclusive no STJ, nos quais há consagração da importância de vinculo sócio-afetivo como elemento caracterizador da paternidade.

Com efeito, no REsp. nº 878941/DF, cuja Relatora foi a Excelentíssima Ministra Nancy Andrighi, restou destacado que o reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos.

Na verdade, diante dos princípios que norteiam nosso ordenamento jurídico, e mesmo diante das normas já positivadas, sejam elas constitucionais ou infraconstitucionais, verifica-se que, numa possível tensão entre o vínculo sócio-afetivo e o vínculo biológico, deverá prevalecer, para fins de determinação da paternidade o aspecto afetivo.

Com efeito, para fins de determinação da paternidade, a afetividade ganha destaque na sociedade atual, devendo prevalecer sobre o vínculo biológico, porque mais importante do que a verdade biológica é saber quem realmente exerce, efetivamente, a função do pai.


REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS

VILELA, João Baptista, Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: 1979.

FACHINI. Luiz Edson. A tríplice paternidade dos filhos imaginários. In: ALVIM, Teresa Arruda, Direito de família: aspectos constitucionais civis e processuais. V.2. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. In: Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte: Del Rey.

DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2ª Ed.

ALMEIDA, Maria Cristina de,Investigação de Paternidade e DNA: aspectos polêmicos, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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